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Aqui, no OBSERVANTES, têm lugar privilegiado:

A poesia, os sonhos e a utopia. A critica incisiva às realidades concretas de Portugal e do mundo baseadas na verdade constatada e só nela. "A verdade nunca é injusta; pode magoar, mas não deixa ferida". (Eduardo Girão)

Aqui, no OBSERVANTES, têm lugar privilegiado:

A poesia, os sonhos e a utopia. A critica incisiva às realidades concretas de Portugal e do mundo baseadas na verdade constatada e só nela. "A verdade nunca é injusta; pode magoar, mas não deixa ferida". (Eduardo Girão)

30.10.08

QUEM ÉS TU?


João Chamiço

(Imagem da net)

QUEM ÉS TU?
Na saca rasgada que tens aos ombros,
Quantas pielas, e quantos escombros
São tugúrios em que jazes vencido.
Quem és tu desgastado vagabundo,
Velho pária que vagueias perdido
De olhos baços e alheados do mundo?
 
Sou a criança, de fato rasgado,
De pés desnudos, sorriso adiado,
Que furta nacos da vida que a trunca.
Eu sou aquele que ateia as estrelas,
E à luz do luar nas noites mais belas
Engendra sonhos da “terra do nunca”.
 
Sou o ministro, sou o presidente,
E o ricaço e o mais pobre indigente.
Eu sou aquele que subiu na vida
Tão perto do Olimpo em altos degraus,
Que trouxe no tombo ventos e naus
E os destroços achados na descida.
 
Viajo no tempo do tempo antigo
Mudaram-me o nome p’ra sem-abrigo.
Nem sempre me lembro de quem sou eu,
De quantas “Isoldas já fui “Tristão”,
Perdido de amores, sonho e paixão;
E hoje; não sou mais, que o espelho teu!
João Chamiço
2008-10-30
28.10.08

PÉTALAS


João Chamiço

      (Imagem da net)

 

    PÉTALAS

 Esta rubra flor alentejana,
Se de um outro lugar fora ela;
Seria assim, tão vermelha e bela
Como a rosa brava mais ufana.
 
Não lhe recusei os beijos meus;
Meus lábios estavam sequiosos
De encontrar os seus; deliciosos,
Enquanto não encontram os teus.
 
P´ra quê desfolhar um malmequer
Se as novas se afogam em  Alqueva?
E a brisa, à flor das águas leva
 
Pétalas brancas de bem-querer,
Ocultas em prados de ilusão
Que, se expostas ao vento se vão.
 
João Chamiço
Pax Júlia, em 2006-03-07
 
Se acaso este soneto for do teu agrado não me felicites.
Eu limitei-me a passar para um papel as palavras que me ditaste, ainda que o não saibas.
26.10.08

POEMA PLANGENTE


João Chamiço

São tantos os girassóis

À direita do carreiro
Quem os pudera contar!
Tantos são os rouxinóis
Nos salgueiros do ribeiro,
Quem os pudera imitar!
 
São tantas as avezinhas
Que esvoaçam rente ao chão
Num vaivém em frenesim.
São tantas lembranças minhas
Penas em meu coração
Que são negras, de andorinhas.
 
São tantos tristes martírios
Que bordejam o caminho
Moldura de triste imagem.
São tantos os tristes lírios
Multidões em desalinho
Que esmorecem a paisagem.
 
São tantas ervas daninhas
Que se infiltram nas raízes
Como os vermes mais imundos.
São tantas tristezas minhas
Tantas hordas infelizes
De sobreiros moribundos.
 
São tantos cantos bucólicos
De sol quente e vida fria
Versos, cantigas dolentes.
São tantos, tão melancólicos,
Retratos de nostalgia
De olhos que escorrem, plangentes.
 
João Chamiço
2008-08-26
 
22.10.08

TRANSUMÂNCIA


João Chamiço

 

http://fotos.sapo.pt/zV9DI86tnheB9BtueYbf/x435

 

Vi, quando os pastores subiam

Muito acima do nevoeiro

 Em busca de novos pastos;
 E das brumas ressurgiam
 Quando os nevões em janeiro
 Lhes dissipavam os rastos.
 
 Sabem de cor os vales sombrios
 E os fantasmas que neles moram
 Desde os tempos da criação;
 Sabem de pastos e pousios
 E das serranas que só choram
 Quando é de sobra, a razão.
 
 Já conhecem as alcateias
 Que moram em morada incerta
 Como os pastores e rebanhos;
 E que vêm de noite às aldeias
 Que é quando a fome mais aperta,
 Jantar-lhes os chibos e anhos.
 
 Mas quando o sol dissolve a neve
 Ao pastor faz falta subir
 E redescobrir o caminho.
 Esboça um sorriso breve,
 Como não tem a quem sorrir
 Aprendeu a sorrir sozinho.
 
 Sabem de cor cada vertente
 E as ilusões que ali madrugam
 Que têm silhuetas de cão;
 E dos olhos discretamente
 Mulheres serranas que enxugam
 Primaveras de solidão.
 
João Chamiço                                                           
      2005-05-08

 

18.10.08

ACASOS IMPROVÁVEIS ???


João Chamiço

Um homem entrou num restaurante para almoçar. Apenas por mero acaso se foi sentar a uma mesa ao lado da qual almoçavam duas mulheres ainda jovens que conversavam entusiasticamente.

O homem reparou nelas discretamente antes de se sentar.
Passou depois a escrevinhar uns rabiscos numa folha branca. Mesmo sem querer acabou por ir ouvindo palavra aqui palavra ali sem se ralar muito em entender o que ouvia.
As duas amigas tinham o ar eufórico de quem se divertia ao máximo com as histórias que iam relatando uma à outra, e deixavam transparecer o enorme gozo que lhes dava o assunto ou os assuntos que ali vinham à baila.
O homem, embora os seus pensamentos voassem por aí sem norte e pouco estivesse ligando à amena cavaqueira delas, sentia-se contagiado por aquela alegria inusitada e imprevista.
As coisas continuaram assim por mais um lapso indeterminado de tempo.
Subitamente, ao homem pareceu-lhe ouvir algo que lhe pareceu “blog”.
Terei ouvido bem? Sussurrou ele.
Ficou mais atento. Agora queria ouvir mais. Agora o tema passara a ser mais difícil de ignorar.
As duas jovens mulheres congeminavam ideias, referiam-se aos conteúdos e ao erotismo sã que usavam nos seus blogs de estimação e aos comentários ali deixados sobretudo pelos amigos virtuais homens que muito as divertiam. O homem da mesa ao lado, cada vez mais contagiado por aquela cena magnífica também já sorria. Felizmente que o sorriso é algo contagiante sem ser doença, e que ainda não paga imposto.
Mas pouco a pouco tudo começava a mudar. O personagem homem começava a ficar algo perturbado, algo nervoso.
Aquela prosa não lhe era de todo desconhecida. Ele fazia um esforço imenso na tentativa de se lembrar de algo que lhe fornecesse uma pista, ainda que ténue fosse, que o levasse ao cerne do que se passava ali, mas nada. Na sua mente apenas uma cor branquíssima teimava em se manter, não deixando espaço para nenhuma réstia de imaginação. Os próprios rabiscos que havia começado pararam por ali.
Diz o ditado que;
 
 “não há bem que não se acabe, nem mal que para sempre dure”,
 
 por issomesmo, uma simples frase chegaria para de imediato virar tudo do avesso:
 
 “Ali no meu cantinho (blog) sinto-me em paz”.
 
 -- Mas, teria eu ouvido bem? O homem passou subitamente de um estado de alguma perturbação para um nítido estado de angústia. Ficou quedo como uma estátua, o seu semblante tornou-se pálido e a testa franzida. As mãos ficaram tolhidas e as pernas tremiam-lhe como varas verdes.
As mulheres continuaram. Ele já não sabia distinguir se eram elas que eram agora mais explícitas, ou se ele, por estar mais atento agora, as coisas faziam outro sentido. Não fora o turbilhão de dúvidas que lhe varriam o cérebro e que lhe travavam as certezas que lhe pareciam ser, e tudo seria muito mais fácil de decifrar.
-- Acalma-te companheiro, dizia ele para consigo. Acalma-te que a solução virá.
De repente, num último assomo de lucidez, o homem levou a mão ao bolso, tirou dele um marcador, e pôs-se a escrever algo na toalha de papel que estava sobre a mesa. Era a primeira estrofe de um soneto.
Ergueu ligeiramente a toalha de um dos lados para que as mulheres pudessem ler o que escrevera.
As duas olharam, leram calmamente, como quem aprecia uma deliciosa sobremesa, esboçaram um ligeiro sorriso, tiraram os olhos da estrofe e continuaram alegres como antes.
-- Ora toma lá para não seres atrevido. Era novamente a voz da consciência em reprimenda.
Porém, uma das mulheres, apenas uma delas, calou-se subitamente adoptando um ar transtornado. Rodou vertiginosamente o pescoço, serrou os seus belos olhos violentamente, brandiu a cabeça durante longos segundos tentando agitar as ideias. Era como se receasse rever algum desses fantasmas que vêm às vezes do nosso passado mais longínquo para nos atormentar.
A mulher abriu calmamente a bolsa que havia pendurado nas costas da cadeira, retirou uma caneta e um pequeno bloco, escreveu algo na primeira folha perante o ar abismado da amiga que nada entendia, virou o pedaço de papel na direcção do homem que o leu com tal sofreguidão que teve de voltar atrás por duas vezes. Na pequena folha de papel estavam agora inscritos os dois tercetos que perfazem a última estrofe do soneto.
 
P. S. Nada disto aconteceu senão na imaginação do autor, mas será que era assim tão improvável?????
 
João Chamiço 
18.10.08

TRÊS


João Chamiço

    Meus lábios se afoguearam

Entre beijos fugidios,
Três fogos se incendiaram
Nesses teus lábios bravios
Três fogueiras me queimaram.
 
Ao entardecer tardavam
As gaivotas nas falésias,
Três redondilhas cantavam
Num trecho de Júlio Iglésias
Baladas que me enlaçavam.
 
Três donzelas passearam
Na areia quente da praia,
Às três horas se enfeitaram
De vestidos de cambraia
Três fogueiras me queimaram.
 
Três navios fundearam
P’ra lá das vagas agrestes,
Três sereias entoaram
Seus três cânticos celestes
Todas três me enfeitiçaram.
 
Três ondas se agigantaram
Todas as três me venceram,
Três Ninfas que me enlaçaram
Todas as três me esqueceram
No alto-mar me enjeitaram.
 
Três pombas esvoaçavam
Foram três beijos fugazes,
Três penas delas poisavam
Por entre flores lilases
Que ao teu fulgor invejavam.
 
Teus olhos s’iluminaram
Como luzeiros errantes,
Três estrelas cintilaram
Em três clarões chamejantes
Três fogueiras me queimaram.
 
João Chamiço
2006-06-01
11.10.08

"CRISE ECONÓMICA"


João Chamiço

        CRISE ECONÓMICA”

As aspas significam apenas que esta é uma expressão algo duvidosa e que dá imenso jeito a muita boa gente, não passando às vezes de uma pura invenção, uma ilusão, um malabarismo sabiamente executado por parte de quem tudo faz para manter sempre do seu lado as regras que ditam o jogo e que decidem a solução do mesmo.

Pela forma como os “entendidos” abordam esta questão da crise, a que eles também chamam “fenómeno da crise”, seríamos até tentados a pensar que algo de maligno ou de diabólico estaria por detrás desse tal “fenómeno” muito pouco fenomenal. A crermos no que dizem os “sábios”, poderíamos até ficar com a ideia de que a culpa poderia ser atribuída a algum ataque de mau-olhado, a algum desfile nocturno de bruxas, a algum sacrifício de galo preto numa encruzilhada de quatro caminhos a meio de uma noite de breu ou a alguma força gravitacional desconhecida que tendesse a esvaziar ainda mais os bolsos de quem já os tem ocos sugando tudo à sua passagem como se de um buraco negro à escala planetária se tratasse.

Quem sabe até, se o tal “fenómeno” se fica a dever à excessiva aproximação do Sol ou a algum encantamento que o luar em noite de lua cheia possa provocar na humanidade inteira quando o uivo dos lobisomens se faz ouvir. Poderá até ser que a crise seja devida a algum outro fenómeno astronómico desconhecido ou mesmo conhecido, como a passagem de algum cometa demasiado próximo da órbita terrestre, podendo causar alguma influência na nossa massa encefálica que nos ponha a todos a bater mal da bola ao ponto de acreditarmos nisto e passarmos todos a passar a mensagem que voa de boca em boca tão ou mais veloz que os seus primos, os boatos, já que, para isso sim, tem a nossa sociedade tão fértil imaginação.

Pensando melhor, será que algum grupo económico de grande dimensão esteja a proceder a alguma evasão de capital para o exterior do planeta Terra? Será que a migração inter-galáctica de capitais já é possível e tem sido mantida em segredo a toda a população mundial assalariada? Será que algum capitalista fanático das viagens inter-galácticas, já que começa a haver disso, farto de “desbaratar” o dinheiro em salários cá na Terra, tenha conseguido pirar-se daqui com sacas e sacas do vil metal, ou do “vil papel” em direcção ao céu ou ao inferno conforme o gosto, e que sem querer ou de propósito, tenha desencadeado o tal “fenómeno” estranho vulgarmente conhecido por “crise económica?”.

Será que todo aquele chinfrim diário na bolsa de valores não é ele também, pelo menos em parte, uma das fontes geradoras do próprio fenómeno? Ele é comprar, ele é vender, compram-se empresas, vendem-se empresas, quase se vendem e compram países inteiros, toda aquela espécie de macacada, salvo seja, cada funcionário com três telefones em cada orelha, a gesticular de olhos arregalados como fantoches de faz de conta, fazendo até lembrar os célebres bonecos de Santo Aleixo, num teatro de marionetas de fazer partir o coco a rir se o caso não fosse sério.

Achamos até que nos merecem os bonecos um pedido formal de desculpas pela comparação feita.

É claro que, tem cada um o direito às macacadas que entender e se ainda por cima for bem pago para fazer a representação, tanto melhor para eles. De resto isso é lá com cada um e nada nos diria respeito se certas fantochadas, essas e outras, não contribuíssem para que a maioria da população ficasse a fazer figura de urso quando numa manhã qualquer chega à porta da empresa onde deixou às vezes dezenas de anos da sua vida e a encontra de portas cerradas.

Atirados à força para situações que são dramáticas a nível económico e emocional perante as incertezas do futuro da família, dos estudos dos filhos etc. sentem-se os cristãos e os outros como que atirados às feras na arena de um teatro romano.

É claríssimo para todos nós que, vivemos numa economia aberta, cada vez mais aberta, talvez demasiado aberta até. As regras são as que são mais as que o mercado dita e cada vez o mercado as dita mais selvagens e mais agressivas em nome da livre concorrência e da enorme falsidade que é dizer-se que a livre concorrência é em si mesma a defesa do consumidor quando ela não defende consumidor nenhum e sim o bolso de meia dúzia.


Tudo muito bem, tudo isto é tão apreciável que quase nos apetece aplaudir. Porém, este discurso contraditório esquece que o consumidor somos todos nós, os mesmos que não têm poder de compra, os mesmos que não conseguem escoar os seus produtos, sejam eles agrícolas ou manufacturados, os seareiros que tantas vezes não conseguem tirar das terras nem sequer o valor investido e que as mais das vezes pediram emprestado aos bancos, aqueles que regam com o seu próprio suor as searas. Outros por seu lado gastam a sua desconsolada vida nas empresas e estão ao mesmo tempo, de forma camuflada ou não, a sustentar todo esse teatro que se faz à volta destas e de outras fantochadas que em nada favorecem a maioria da população. Porém e para que nem tudo seja negativo, todo o povo está sempre devidamente informado pela rádio. Três ou quatro vezes ao dia toda a nação fica sabendo das últimas novidades sobre o evoluir das tendências bolsistas de Lisboa, Londres, Tókio e Nova Yorque. Assim “todos ficamos a saber” se há ganhos, se há perdas e finalmente se a sessão fechou em alta ou em baixa e por quantos pontos percentuais“. Isto é “deveras útil” à população laboriosa do país, toda esta parafernália de informações de que os milhões de pobres que aqui habitam tanto carecem para que no final da sessão fiquem provavelmente a saber que, afinal o resultado negativo da Bolsa os lixou ainda mais e que afinal e sem que o soubessem e sem que nada tenham feito para isso, foram eles os grandes perdedores da sessão bolsista do dia.


Como diria Laura Esquível; nenhum corretor de bolsa quereria trabalhar para um multimilionário que gostasse de dividir o seu dinheiro com os pobres, assim como nenhum governo quereria ao seu serviço um soldado que, antes de atirar sobre o inimigo se pusesse a pensar na tragédia que poderia representar para a mulher e filhos deste se ele viesse a perecer naquela batalha.


História de uma aldeia com sede

O facto de haver quem considere que a crise económica é um fenómeno, trouxe-nos à ideia uma história em banda desenhada que lemos há já bastantes anos.

Uma aldeia isolada atravessava uma seca nunca vista até então. A água escasseou de tal forma que todas as fontes das redondezas deixaram de correr e nem os poços que haviam nas hortas e nos vales cobertos de milho resistiram à fúria dos elementos que desencadearam aquela enorme e interminável canícula. Apenas numa propriedade, a que ficava mais a montante do vale, a ribeira ali existente continuava como por milagre a jorrar voluntariosa o precioso líquido. Vendo ali uma possibilidade de obter lucro rapidamente, o proprietário apressou-se a impedir que a água pudesse sair da sua propriedade erguendo uma enorme barreira de terra com alguns metros de altura que formou uma represa capaz de suster toda a água, e que dadas as circunstâncias não era assim tanta, ainda que fosse suficiente para todos.

Sem uma única gota de água à sua disposição, lembraram-se os aldeões de ir falar com o dono da água suplicando-lhe que os deixasse beber dela já que, a não ser assim, nenhum deles resistiria por muito mais tempo. A verdade é que o dono da água não estava pelos ajustes e agora que tinha em mãos uma forma segura de fazer dinheiro num negócio sem concorrência, já que mais ninguém em redor tinha uma tal riqueza para vender, era exactamente o que ia fazer; vender a água aos seus vizinhos e amigos. Era até um grande favor que lhes fazia, já que da sua decisão estava dependente a sobrevivência de todos eles.

  • Nós até concordamos consigo. A água está na sua propriedade é certo, mas nós estamos quase sem dinheiro, como é que lhe podemos comprar a água de que precisamos?

- Calma, deixem-me explicar a minha ideia. Tenho para vos apresentar uma solução muito simples e com a qual todos saímos a ganhar. Vou contratá-los a todos para trabalharem na minha exploração de água a partir de hoje e nas seguintes condições: a vossa missão aqui consistirá, se a aceitarem, em transportar água para aquele reservatório lá no alto. Eu pago-vos a €0,50 por cada balde de água que depositem no reservatório. Logo, passam a ter dinheiro para me comprar a água de que necessitam e que eu vos venderei por €0,55 cada balde.

A todos pareceu razoável a proposta. Era justo que o dono da água ficasse com alguma margem de lucro já que essa é a lógica da oferta e da procura, são as leis do mercado a funcionar; diziam eles resignados. Aceites as condições e acordadas as mesmas entre as partes, deu-se início à tarefa da recolha e armazenamento do precioso líquido e desde logo passou a haver água para todos. Todo o povo passou a viver dias de abundância, já que a água ia chegando para saciar as bocas sequiosas de pessoas e animais e ainda para mitigar a sede de algumas culturas que sem ela não chegariam a germinar. Toda a gente tirava o chapéu ao cruzar-se com o generoso vizinho dono da água. O que teria sido deles sem a sua nobreza de alma e o discernimento empreendedor com que passou por cima daquela tragédia anunciada. Não se falava de outra coisa em toda a aldeia e a boa notícia corria mesmo para lá dela, os rostos rejubilavam, havia sempre um ar de riso em todas as bocas e nem mesmo os mais pobres de todos se importavam muito de o ser, se o pouco que tinham lhes bastava, para quê ter mais ambições numa terra em que até o homem mais rico se dispôs a partilhar a sua água com todos e ainda por cima lhes deu oportunidade de trabalharem honestamente? Tudo parecia correr de feição, e assim aconteceu durante muito tempo. Transportava-se a água para o depósito, comprava-se a que fazia falta, era como que um circulo que se completava. Toda a gente vivia tão contente que ninguém se deu ao trabalho de pensar que as coisas podiam muito bem não ser sempre assim já que determinado pormenor estava lentamente a minar a viabilidade deste excelente negócio sem que ninguém se apercebesse e que passamos a explicar: O dinheiro que os trabalhadores recebiam por cada balde de água, não chegava para adquirir essa mesma quantidade de líquido, já que, recebiam €0,50 pelo trabalho mas pagavam €0,55 pela aquisição na loja onde se vendia a água à população. Sem que eles dessem por isso, a água foi muito lentamente crescendo no reservatório devido a esse diferencial, até ao dia em que o reservatório transbordou. Chegado este momento de impasse teve o dono da água de despedir pelo menos alguns trabalhadores. Uma vez o depósito cheio já não tinha trabalho para dar a todos porque a continuar assim passaria a desperdiçar-se a mercadoria inutilmente derramando-se no chão sem qualquer préstimo nem lucro, uma vez que era maior a produção que o consumo. Como os desempregados não podiam comprar a água, esta não se vendia. Como esta não se vendia não valia a pena juntá-la e foi assim que todos acabaram novamente sem trabalho e sem a preciosa água.


Fenómenos, fenómenos, são os do Entroncamento. Ali sim, ali existem de facto verdadeiros fenómenos. São os nabos de três quilos, apesar de haver por aí nabos com muito mais peso e que nem por isso se tornam fenómenos, a sua couve galega que sobe por aí acima e que sem razão aparente facilmente atinge a altura de três jogadores de basquetebol ou ainda uma abóbora menina que daria por si só para confeccionar uma enorme sopa capaz de alimentar durante um dia todas as tripulações de toda a frota de submarinos de guerra portugueses.

Isto sim, são os verdadeiros fenómenos que como tal devem ser vistos, já que hoje em dia, um eclipse total ou anelar do sol ou da lua por exemplo, já não podem ser chamados de fenómenos numa época em que os conhecedores do assunto sabem prever com décadas de antecedência e ao minuto o seu momento inicial e o momento do seu fim graças apenas a estudos matemáticos feitos com base na observação contínua dos astros e dos seus comportamentos.

Não precisamos de ser peritos na matéria para percebermos que os factos ou acontecimentos astrológicos há muito que deixaram de ser fenómenos, tendo em conta o estado da ciência de hoje em matéria de conhecimentos e métodos.

Há uns séculos atrás, alguém que tivesse a ousadia de prever tais coisas e de o dizer publicamente corria sério risco de acabar sentenciado à fogueira acusado de bruxaria ou heresia, mas hoje, só não está ainda na mão dos homens o controlo destes acontecimentos e ainda bem que assim é.

Agora, quando se apelida de fenómenos; a globalização da economia ou as sucessivas e cíclicas crises económicas, não podemos senão deduzir que, aqui sim, anda de facto “bruxedo” metido nisto.

Não é que vem os entendidos falar-nos de fenómenos e dizer-nos que se Deus quiser tudo se há-de resolver? Não brinquemos com assuntos sérios, sejamos claros e explícitos; então a globalização da economia é um “fenómeno”? Bom ou mau? Bom para quem e mau para quem? Quais são os efeitos e influências para a generalidade da população? Ouvindo os comentários entusiastas de um grande empresário nacional, deve ser razão bastante para ficarmos de pé atrás. Se um dos homens mais ricos do país se mostra assim tão convencido das vantagens, devem os pobres delas desconfiar e fazer desde logo a previsão das desvantagens que daí poderão advir.

João Chamiço


(A globalização é um facto. É o fenómeno mais evidente da modernidade, um processo que já conta com meio milénio de duração, uma evolução irreversível resultante dos descobrimentos e extraordinários avanços tecnológicos da humanidade a partir do período da Renascença. Podemos datar a globalização, se quiserem, dos fins do século XV quando portugueses e espanhóis se lançaram "por mares nunca dantes navegados", enquanto Copérnico e Galileu propunham uma teoria heliocêntrica que confirmava a redondeza da Terra e estendia infinitamente os limites do Universo. Desde então, o processo tem avançado a passos de gigante)


http://www.ensayistas.org/antologia/XXA/meira/