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Aqui, no OBSERVANTES, têm lugar privilegiado:

A poesia, os sonhos e a utopia. A critica incisiva às realidades concretas de Portugal e do mundo baseadas na verdade constatada e só nela. "A verdade nunca é injusta; pode magoar, mas não deixa ferida". (Eduardo Girão)

Aqui, no OBSERVANTES, têm lugar privilegiado:

A poesia, os sonhos e a utopia. A critica incisiva às realidades concretas de Portugal e do mundo baseadas na verdade constatada e só nela. "A verdade nunca é injusta; pode magoar, mas não deixa ferida". (Eduardo Girão)

29.06.08

PUTA VELHA


João Chamiço

• -- Olá. • -- Olá, respondeu Francisco Vieira. • -- Queres dar uma volta? • -- Dar uma volta como? • -- Ah, já percebo. Não, não quero. Desculpe mas parei aqui apenas porque estou a fazer tempo à espera de uma pessoa. Peço desculpa se a fiz pensar que estaria interessado nos seus serviços. • -- Não, tudo bem, eu é que peço desculpa pelo meu atrevimento. • Francisco Vieira acabara de estacionar a viatura junto ao Jardim da República em Santarém. Depois de introduzir algumas moedas no parquímetro, sentou-se ao volante do veículo e pôs-se a ler “O Conde de Monte Cristo”. • Uma mulher abeirou-se da janela. Já passara seguramente a meia-idade, diríamos até que, teria idade para se reformar da “vida” que lhe consumia os anos da sua carreira profissional. • Trazia no rosto um ar de amargura e de desleixo, vinha enfiada numas calças de fato de treino tão enxovalhadas como ela. Uma camisola branca que parecia limpa e que por ter sido lavada pelo menos um milhão de vezes estava tão gasta como a mulher que a envergava, completava-lhe por assim dizer a sua escassa indumentária. • A mulher e a camisola deveriam ter os mesmos anos de carreira, cada uma na missão que o destino lhes atribuiu. Francisco Vieira olhou-a fixamente antes de responder à pergunta; queres ir dar uma volta, com o mesmo grau de respeito que responderia a qualquer outra profissional de qualquer outro “ramo de negócio ou serviço”. Sabendo-se de antemão que nem sempre as pessoas de aparência decente correspondem à certeza de o serem e nem sempre o são seguramente. Francisco Vieira não resistiu a desafiar a sua imaginação tentando fantasiar aquela mulher, fazendo-a recuar vinte anos no tempo.

Ele que já começava a ter até o hábito de viajar no tempo, porque não tentar imaginar como seria aquela mulher vinte anos antes quando os homens todos do mundo lhe perguntariam a ela se queria dar uma volta e o sim ou o não, seria ela a ditá-los e não os homens seus candidato a clientes.

• Ser o observador ocasional deste episódio e ao mesmo tempo ser grosso modo também protagonista do mesmo, deixou Francisco Vieira completamente atormentado e pensativo. Quem estava ali quase de rastos naquela situação degradante, era antes de mais um ser humano que tentava apenas sobreviver ainda que à sua maneira um tanto marginal.

Não ficámos a saber, não ficaremos nunca, se era a sua opção profissional ou se outra razão ou razões haveriam na sua vida que a para ali a encaminharam, mas era fácil adivinhar-lhe no rosto as marcas ferozes das dependências, talvez passadas, talvez presentes.

Embora praticando uma profissão “marginal” reprovável talvez, fosse como fosse, era aquela a sua realidade naquele instante e a nós não nos cabe julgar seja quem for. A mulher já não tinha, nem por dentro nem por fora, a áurea necessária ao “êxito” daquela “profissão”. Os clientes de que ela precisava para sobreviver escorregavam-lhe agora como água por entre os dedos. Já poucos ou nenhuns se propunham escorregar-lhe por onde ela pretendia.

Não é segredo para ninguém que estas relações funcionam segundo as regras do mercado, apesar do seu carácter marginal. O cliente, já que paga, tem direito à escolha da “mercadoria” que quer comprar e por isso, por ser seu direito fazê-lo, elege aquela que mais lhe agrada. Estranho seria que assim não fosse. No caso presente, a mercadoria mais apetecível caracteriza-se pela opção pelas mulheres mais jovens na profissão e que o lesto passar do tempo rapidamente se encarrega de transformar em putas velhas e sem resgo como aquela que se propôs “dar uma volta” com aquele nosso personagem real.

 • Francisco Vieira, devido à sua situação de desemprego sentiu-se perfeitamente capaz de entender a situação deprimente daquele ser. O juízo de valores não era para ali chamado naquele momento, a condição humana sobrepunha-se a todos os outros valores tantas vezes desumanizantes de tão puritanos que são. Aquela fêmea velha que já não excitava os machos, era agora um traste rejeitado pela sociedade que dela usou e abusou. Ressalvando naturalmente as necessárias diferenças e proporções, era também um pouco assim que Francisco Vieira se sentia, quase como aquela puta velha sem resgo nenhum. • -- Eu próprio me sinto um pouco assim, disse Francisco Vieira para consigo. Ela já não serve para desempenhar a sua função porque o tempo e a vida lhe roubaram o brilho que os homens precisavam ver nela para que fosse objecto de cobiça. Mas então e eu? que apenas procuro desempenhar a minha função num qualquer trabalho considerado normal, desses que se realizam apenas pela força de braços e capacidade mental e para os quas não se exigem em princípio, características sedutoras? Então, qual é afinal a diferença que nos separa? Ora, se o problema dela residisse apenas no seu comportamento de má porte, então a mim o que não me faltariam eram empregos, já que me considero uma pessoa de aspecto normal e comportamento compatível com qualquer trabalho honesto. Em suma, a conclusão a que tenho de chegar é a de que também eu não passo de uma outra espécie de “putas velhas” sem qualquer préstimo para esta sociedade absurda.

• Também em relação às prostitutas é patente a enorme hipocrisia da sociedade e o “enterrar da cabeça na areia” que não parece fazer com que algum responsável político deixe de dormir por isso.

 A prostituição é um acto proibido, mas é muito mais cómodo deixar andar do que encontrar soluções. Só não vê quem não quer ver o que se passa com o negócio do sexo que é praticado a poucos metros das estradas quase à vista de toda a gente sem qualquer controlo sanitário nem policial em condições degradantes e deploráveis de marginalidade consentida ou simplesmente tolerada. Não temos sequer lembrança de que alguma ministra ou deputada se tenham alguma vez revoltado contra esta miséria social das mulheres, contra este estado de perverso e aviltante abandono a que a nossa sociedade parece ter-se habituado.

 

• Há um camião que se põe em marcha para partir, logo de seguida um automóvel que pára. O condutor desce da viatura e encaminha-se para um pano vermelho que se encontra dependurado no ramo de um arbusto mesmo na berma da estrada junto da entrada de um carreiro que leva ao interior da vegetação. Quem não souber do que se trata é bem capaz de confundir este sinal com a marca deixada por algum caminheiro para o caso de algum companheiro de jornada se perder do grupo. No chão há um velho balde de óleo de motor já vazio e emborcado sobre a berma na confluência do carreiro ou da simples vereda que conduz ao local que interessa. Lá ao fundo está uma mulher de pé exibindo os atributos da mercadoria que tem para vender. O homem aproxima-se “cautelosamente” como se fosse o macho de uma “viúva negra” e detém-se a alguma distância. Entre eles fica um espaço vazio e frio de pouco mais de um metro que ambos respeitam como se de uma regra bem definida se tratasse. Segue-se a fase de negociação do “contrato”, chega-se rapidamente ao preço predefinido que é pago num instante já que o tempo também é dinheiro. Pago adiantado porque não lhe assiste a ele o direito de reclamar a qualidade do serviço que lhe vai ser prestado.

• Quem? nós? Ah, quer o nosso leitor (a) saber quem somos nós nesta história! Bem, somos quem somos e às vezes, somos apenas quem parecemos ser, mas outras vezes nem por isso. Começámos primeiro por ser apenas os narradores anónimos desta história. A pouco e pouco fomo-nos diluindo e confundindo nela. Umas vezes, como personagens reais às quais tivemos de mudar os nomes, outras vezes encarnando personagens fictícias que colocámos em acontecimentos reais e outras vezes ainda, personagens fictícias em acontecimentos igualmente fictícios, já que todas as histórias mesmo as verdadeiras sempre têm um toque da mão de quem escreve.

Fomos Francisco Vieira, personagem naturalmen-te fictícia por necessidade de encobrir pessoas reais em episódios mais reais uns que outros. Fomos nós mesmos em situações concretas em que não haveria lugar para a fantasia sem corrermos o risco de ser desmascarados por alguém atento e de memória incólume.

27.06.08

ERAS DOCE MANHÃNZINHA


João Chamiço

Eras doce manhãzinha

Em teu jardim perfumado

De frescas águas regado;

A jardineira expedita

Delicada princezinha,

De cores de flor marinha

Cada dia mais bonita.

 

Se Afrodite ali passasse

Num fim de tarde de amores

Ela diria das flores

Sem que alguém lhe perguntasse:

Delas houvesse a primeira

Que à sua jardineira

Em charme se assemelhasse.

 

Não há flor posta a teu lado

Que em jardins da Babilónia

Flor-de-lis ou de begónia

Ou malmequer desfolhado,

Que te destrone, rainha!

Eras doce manhãzinha

Em teu jardim perfumado!

 

J. Chamiço

2008-06-26

07.06.08

BARCO DE PAPEL


João Chamiço

                                Fiz um barco de papel

Que fui pôr a navegar

Prendi-o com um cordel

P’ra ir com ele brincar.

 

O meu barco de papel

Sem que eu saiba explicar

Quebrou o fino cordel

E lançou-se no alto mar.

 

Eu fiquei, a vê-lo partir,

Desgostoso no meu cais;

Queria nele seguir

Mas era tarde demais.

 

Vi-o partir, na viagem

E eu, tão estranhamente

Fixado na sua imagem

Olhava-o infinitamente.

 

Então, como por engano

Dei comigo embarcado

Entre as vagas do oceano

E o céu todo estrelado.

 

Só vi brincando felizes

Meninos por toda a terra

Fui a todos os países

"Nunca vi fome nem guerra".

 

Em bátegas de furor

E tardes de calmos ventos,

Era a mão do Redentor

A livrar-me dos tormentos.

 

Que faço neste batel

Todo feito de papel?

Não me perguntem, não sei!

Nem como foi que embarquei!

 

Mas o barco de papel

No rumo que leva a vida

Veio ancorar no cordel

Ao mesmo cais da partida.

 

Esta história que contei

Do meu barco de papel,

Acabou quando acordei

Sem ver barco nem cordel.

 

João Chamiço