GRITO NEGRO
João Chamiço
Grito Negro
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João Chamiço
Grito Negro
João Chamiço
Um poeta algarvio, não do litoral mas da meia-encosta - S. Bartolomeu de Messines - nascido em 1830 e falecido em 1896, de seu nome João de Deus Ramos, escrevera A VIDA, elegia que talvez seja a sua obra-prima. Transcrevemos alguns trechos dessa elegia:
A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai;
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou.
A vida - pena caída
Da asa de ave ferida -
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou!João Chamiço
É como um polícia sinaleiro
Executa sinais bem treinados,
E fica na mira do dinheiro
Neste negócio não há fiados.
Do utente, que paga a cobrança
Um encolher de ombros conformado,
É assim que se escusa a vingança
Pra que o carro não surja riscado.
Aborda-nos com ar de simplório
No rosto, as infâncias não tidas,
Mente a quem lhe diz a verdade,
As fronteiras do seu território
Têm regras por ele definidas,
Ele é dono de toda a cidade.
F. Januário
João Chamiço
Vai o moleiro enfarinhado
Terminada a jornada de um dia
Com o leve peso da maquia.
Roda sem descanso a sua mó
Que em farinha, transfigura o grão,
De onde vai nascer o fino pó
Que um dia há-de vir a ser pão.
Subindo as veredas do outeiro,
Na companhia do seu jumento
Lá vai solitário, o moleiro,
À noite, quando adormece só
Voa p'ra longe, o seu pensamento
Solto do rodar da sua mó.
João Chamiço
Nem o escultor estava à espera,
Arrancada da rocha impura
Que só às mãos do mestre se altera.
É como um retrato de donzela
Que a pedra escondia até então,
E que pouco a pouco se revela
Como se em tela pintada à mão.
Esculpe uma figura qualquer
Que às vezes, o cliente encomenda,
Às vezes um corpo de mulher.
Tem pesadelos em que resiste
A por a nova peça à venda,
Quando ela, em seus sonhos existe.
João Chamiço
Sei que se lavrou certidão
Da data do meu nascimento
No tempo da outra senhora,
Mas recordo-me desde então
Que nunca, em nenhum momento
Desse tempo guardei penhora.
Ainda assim quero expressar
Que ser tratado assim, aceito
Se for nobre a intenção,
Porém, posso desconfiar
Que indecoroso conceito
Desonra a minha certidão.
Sou do passado e do presente
De olhos postos no há-de vir,
Trago sonhos novos de agora
Sonhados desde antigamente
Quando era proibido sorrir
No tempo da outra senhora.
Mas sei que há doenças sem cura
Que tenho com toda a certeza
E vou ter pela vida fora;
A paixão pla nossa cultura
E pela língua portuguesa
Do tempo de qualquer senhora.
Não esqueço Humberto Delgado
Nem os da mesma convicção
Desses que nos faltam agora.
Foi pela Pide assassinado
Mas não dizia a certidão
Do tempo da outra senhora.
Uso as novas tecnologias
Sem saudosismo pacóvio
Na crista do tempo a cavalgar,
Sem desmedidas euforias
Tenho por verdade, o óbvio
Diariamente a mudar.
Preocupa-me a natureza
O lixo e a poluição
De ontem, de amanhã e de agora,
Sou fanático da defesa
Das nossas matas no Verão
De antes da outra senhora.
Se alguém razão poderá ter
Interrogo-me eu então
Depois do que aqui se descreve,
Como pode alguém sem saber
Enxovalhar-me a certidão?
Claro que pode, mas não deve.
Estou vigilante às mudanças
Que o comboio não se detêm
Mas tem de ser encaminhado,
Pra que amanhã novas crianças
Sejam defensoras do bem
Por outras antes semeado.
Olho em frente, sei de onde venho
Sem poluição me apresento
Trago energia aliciadora
E que ricas jazidas tenho,
Sou filho do sol e do vento
Do antes da outra senhora.
Mas quantos há, que pese embora
Serem de um tempo aquém daquele
Ao invés da mentalidade,
São do tempo da outra senhora
Mas sem terem sabido nele
Qual o preço da liberdade.
Devem fazer introspecção
E a sua mente bem cuidar
Quem pensa que o tempo demora,
Lesto, à própria certidão
Indeléveis sinais vai dar
De um tempo de outra senhora.
F. Januário
João Chamiço
ARCO ÍRIS
Há num firmamento escuro
Um arco íris nos céus;
E é nele que procuro
As íris dos olhos teus.
Enigmas que o mundo tem
Tão difíceis de entender,
É quando chove que alguém
Ergue os olhos pra te ver.
Se um extremo fosse meu,
Aquele que beija o chão
Com cores da cor dos lírios,
O outro seria teu,
Que é lá que o meu coração
Tem tormentos e martírios.
João Chamiço
2006-02-21
Em Algarve
João Chamiço
Sou senhor de todas as torres
Do castelo onde sou rei
Só não sou dono das flores
Que fora dele plantei.
Tenho capelas douradas
E mesquitas pra rezar
Mas nem mouras encantadas
Minhas preces vêm escutar.
Por coincidência maldita
Sou dono de tanta riqueza
Mas não da flor mais bonita
Que há na minha fortaleza.
De nada me serve ter trono
Nem de um castelo ser rei
Se não puder ser o dono
De um coração que eu cá sei.
F. Januário
João Chamiço
Vi quando os pastores subiam
Muito acima do nevoeiro
Em busca de novos pastos;
E das brumas ressurgiam
Quando os nevões em janeiro
Lhes dissipavam os rastos.
Sabem de cor os vales sombrios
E os fantasmas que neles moram
Desde os tempos da criação;
Sabem de pastos e pousios
E das serranas que só choram
Quando é de sobra, a razão.
Já conhecem as alcateias
Que moram em morada incerta
Como os pastores e rebanhos,
E que vêm de noite às aldeias
Que é quando a fome mais aperta,
Jantar-lhes os chibos e anhos.
Mas quando o sol dissolve a neve
Ao pastor faz falta subir
E redescobrir o caminho,
Esboça um sorriso breve
Como não tem a quem sorrir
Aprendeu a sorrir sozinho.
Sabem de cor cada vertente
E as ilusões que ali madrugam
Que têm silhuetas de cão;
E dos olhos discretamente
Mulheres serranas que enxugam
Primaveras de solidão.
João Chamiço
João Chamiço
Quando as dunas taparem os dois hemisférios
Quando já não se ouvirem pintassilgos nem pardais
Quando as cearas se enrouparem de cemitérios
Quando já não te acenarem os demais,
Quando as aves não voarem, porque as mataste
Quando os rios não correrem, porque os bebeste
Quando os peixes não nadarem, porque os castraste
Quando as árvores perecerem, porque cortaste o último cipreste
Quando apenas tu, restares sobre esta ilha
Poderás possuir tudo aquilo que restar,
Quando já não houver quem te exija partilha
Do nada, que terás então p´ra partilhar.
João Chamiço